por CLAUDIO SCHAPOCHNIK
Por reunir a maior comunidade israelita no Brasil, estimada em mais de 70 mil pessoas, a cidade de São Paulo, com uma população total superior a 11 milhões de habitantes, agrupa pessoas que preparam pratos típicos da culinária judaica para esta parcela da população — ávida pelos sabores e aromas ancestrais dos países de onde vieram seus pais, avós e bisavós. Uma destas pessoas é a cozinheira pra lá de talentosa e muito simpática: Cecília Syma Judkowitch. Do alto de seus 80 anos, ela talvez seja a decana no segmento de comida judaica na cidade. Foi dona do restaurante Cecília. Em 26 anos de atividades, conquistou milhares de fãs com pratos como varenique e guefilte fish, por exemplo. E continua na ativa.
Nos anos 1980 conheci o restaurante Cecília, quando funcionava na rua Amazonas, no Bom Retiro. Era criança. Minha família fazia um mesão por lá, junto com meus tios, Isidoro e Lea, e primos, Mauro, Fábio e Henrique, que moravam a duas quadras do estabelecimento. Não lembro o que a gente comia, mas eram ótimas refeições.



Por meio de uma de suas filhas, a doceira Renata — segundo diz o mercado, ela puxou a mãe, pois seus produtos (doces e bolos) são excelentes —, fiz contato pelo Facebook, me apresentei e disse que gostaria de entrevistar sua mãe para o QUE GOSTOSO!. Um dia depois, pela manhã, Cecília ligou para o meu celular, se apresentou e depois disse “Fala!”. Ou seja, que poderia iniciar a entrevista. Expliquei que gostaria que fosse pessoalmente, se possível, e ela topou.
No dia seguinte (sexta-feira passada, dia 11 de março), estava por volta das 10h em frente ao prédio onde ela vive e cozinha, na rua Correia de Melo, no trecho entre as ruas Três Rios e da Graça. Endereço no miolo do Bom Retiro, bairro da região central de São Paulo e considerado, em 2019, o mais cool da cidade segundo a revista britânica Time Out.
A rua onde mora a Cecília toca demais à minha memória afetiva-familiar. Prédios à frente do dela fica o edifício onde viveu por muitos anos a minha queridíssima avó materna, Esther, falecida há muitos anos. Lituana de nascimento, era também uma exímia cozinheira. Não provei até hoje bolo de mel com ameixa, um clássico da gastronomia judaica, e geleia de morango mais saborosos que os feitos pela minha vó.
Cecília abriu a porta do prédio e estava acompanhada por sua outra filha, Rosana, que trabalha com ela no preparo dos pratos.


Combinamos, no dia anterior, de irmos em algum café para eu fazer a entrevista. E assim fomos para um local com a cara da diversidade étnica do Bomra — apelido do Bom Retiro dado pela comunidade judaica: o aconchegante Béni Café, estabelecimento de outra importante coletividade bomretirense, a coreana, localizado na rua Lubavitch, 79.
Sentamos nós três numa mesa. Pedi café e água com gás gelada e a Cecília, uma omelete. A entrevista, que durou 1h30, poderia ter levado muito mais tempo dado às gostosas histórias e lembranças dela, que exigiu que eu a chamasse de você e não de senhora. Confira abaixo os principais trechos da conversa.
ORIGEM
Cecília nasceu em Marília, cidade no interior paulista distante cerca de 430 quilômetros a Oeste da capital, junto com mais três irmãs.

Os pais dela vieram da Polônia, especificamente da cidade de Łódź (fala-se Údj), importante cidade a 140 quilômetros a Oeste da capital polonesa, Varsóvia. Em Łódź a avó materna trabalhava com alimentação, pois tinha um mercado. “Havia aqueles tonéis de pepino em conserva, de hering (arenque)”, recordou Cecília.
“Graças a um tio, que conseguiu antever de alguma forma o terror que vinha pela frente, já em 1933 [ano de ascensão do nazismo ao poder na Alemanha], ele disse prá família deixar a Polônia e assim todos o fizeram e vieram para o Brasil.”
PAIXÃO PELA COZINHA
O amor por cozinhar aflorou na Cecília quando ela era bem pequena, aos nove anos de idade. “Eu adorava ficar na cozinha com minha mãe. Ajudava ela a fechar os kreplachs e os vareniques”, lembrou Cecília, sobre a dona Ester.
As duas especialidades são, respectivamente, uma massa recheada (de carne moída ou outro ingrediente) para comer junto com o caldo de galinha (yuch, em iídiche — a língua dos judeus do Centro, Norte e Leste da Europa), e uma massa também cozida e recheada (de batata ou outro ingrediente) saboreada com cebola picadinha bem frita em cima.

“Foi com minha mãe que aprendi tudo, devo tudo a ela”, recordou Cecília. “Comida judaica típica mesmo minha mãe fazia nas festas judaicas.”
ABERTURA DO RESTAURANTE
A família Judkowitch deixou Marília e se mudou para a capital paulista no icônico ano do Quarto Centenário de São Paulo, em 1954.
Muitos anos mais tarde, já casada, Cecília trabalhava na indústria têxtil que tinha com o marido. Com o posterior fechamento da empresa, o que ela iria fazer profissionalmente? Uma amiga sugeriu uma ideia que iria mudar radicalmente a vida dela. Foi durante uma noite de tranca em sua casa com algumas amigas, onde serviu kreplachs.
“´Por que você não faz comida prá fora? Se você fizer, faço minha encomenda agora´, falou aquela amiga”, relembrou Cecília sobre a, digamos, “intimidação” que recebeu no bom sentido. Foi aí que a mariliense passou a cozinhar profissionalmente, pois os familiares e parentes já se encantavam com os pratos feitos por ela.

O restaurante foi aberto em 1980 e, durante 26 anos, funcionou em cinco endereços. A casa foi aberta na rua Amazonas e depois foi para a rua dos Bandeirantes, ambas no Bom Retiro. “Aí o Marcos Arbaitman me levou pr´A Hebraica”, contou Cecília, se referindo ao empresário (leia-se Maringá Turismo) e ex-presidente do maior clube judaico do mundo, na Zona Sul de São Paulo.
“Após um período na Hebraica, voltei para o Bom Retiro na rua Correia de Melo e, como último endereço, fiquei na rua Tinhorão, em Higienópolis”, completou a cozinheira indicando outro bairro da região central da capital paulista, com grande presença de famílias judaicas.
“Abri o restaurante com cara e coragem e cheia de dívidas.” As dívidas foram pagas e mais à frente, explico como ela saldou tudo.

CARDÁPIO
O menu do restaurante era basicamente ashkenazim — plural da palavra hebraica ashkenaz, que significa Alemanha e ainda designa os judeus originários dos países do Centro, Norte e Leste europeus e falantes do iídiche. Ou seja, pratos feitos com ingredientes como peixes, farinha de trigo, mel, carnes bovina e de frango, vegetais (batata, pepino, beterraba, maçã) etc.
Perguntei pra Cecília quais são os pratos judaicos que ela mais gosta. A resposta: “Kreplach, varenique, bolinhos de carne e frango, guefilte fish e tcholent — mais ou menos”. Tcholent, a “feijoada judaica”, leva feijão branco, carne bovina, cevadinha, batata e cenoura. Todas estas e outras receitas, ela levou para o menu do seu restaurante.
Lembro que havia um mesão com várias opções de saladas e entradas judaicas e, digamos, internacionais. Lá que estava, por exemplo, o seu famoso guefilte fish — bolinho de peixe cozido, geralmente de carpa, servido com uma rodela de cenoura em cima e comido com chrein (raiz forte tingida pela beterraba de roxo) e geleia obtida com o cozimento da carcaça do peixe.
Questionei à mariliense-bomretiriana se o guefilte fish dela era e é salgado ou doce, pois não me lembro do gosto. “É um meio termo”, resumiu.

Perguntei porque, na minha família, o maravilhoso guefilte fish outrora sempre feito com esmero pela minha mãe, Eva (paulistana filha de lituanos), era salgado. Até como a versão doce do prato, mas, de longe, prefiro o salgado. Um interessante artigo da publicação digital Tablet, dos Estados Unidos, explica porque há guefilte fish doce e salgado. Para lê-lo, clique aqui.
“Ensinei muitos sefaradim a comer guefilte fish”, disse Cecília, sorrindo. Sefaradim, plural de sefarad em hebraico, significa Espanha e designa também os judeus originários da Península Ibérica e que seguiram para outros países depois da expulsão, em 1492 da Espanha e em 1496 de Portugal, como a Turquia. Acho que estes sefaradim ficaram muito felizes em provar e gostar do bolinho cozido de peixe.
Um detalhe importante: todas as receitas da Cecília eram feitas “de cabeça”, não havia um caderno. “Era abíssalê dus, abíssalê ients”, ela me respondeu em iídiche e traduziu para o português — “um pouco disso, um pouco daquilo”.
As fichas técnicas, a receita com as medidas e modo de preparo descritos de forma profissional, foram feitas anos mais tarde no último endereço do restaurante, em Higienópolis, pela chef e consultora Ana Soares. “Ela é uma excelente pessoa e fez um ótimo trabalho.”
“Nos 26 anos de restaurante tive muitos clientes não judeus”, comemorou a cozinheira, demonstrando a capacidade da comida unir pessoas de diferentes origens, credos etc.

NA TV E HOTELARIA
Com o tempo, a cozinheira foi colhendo os louros do sucesso advindo do seu restaurante. Ela recebeu convites para participar de programas de TV e fazer um festival gastronômico num hotel e, na imprensa, críticas elogiosas eram publicadas em jornais e revistas.
Cecília lembrou de dois programas. “Fui na Ofélia, na Bandeirantes, e na Ana Maria Braga.”
A Ofélia citada acima é a culinarista Ofélia Ramos Anunciato (1924-1998), pioneira em apresentar programas de culinária na televisão no Brasil. A estreia dela ocorreu em 1958 na então TV Tupi. Posteriormente na TV Bandeirantes, ela liderou o famoso programa Cozinha Maravilhosa de Ofélia por mais de 30 anos, onde Cecília fez uma participação.
Em relação aos críticos e jornalistas especializados em gastronomia, lembrou de dois clientes: Saul Galvão (1924-1998), que escrevia n´O Estado de S.Paulo, e de Arnaldo Lorençato, hoje editor sênior da revista Veja São Paulo.

Sobre o turismo, Cecília chegou a fazer duas temporadas da Semana Gastronômica de Israel na então Pousada do Rio Quente — que depois mudou de nome para Rio Quente Resorts, recebendo diversas melhorias e atrações, em Goiás. Décadas atrás o hotel era famoso pelas semanas gastronômicas temáticas de países como Itália e Japão, entre outros.
“Fazia a minha comida, que não tem nada a ver com Israel. Os hóspedes adoraram. Foi um sucesso, uma loucura e valeu demais. Recebi muito bem.”
Foi com esse dinheiro que Cecília pagou as dívidas que teve quando a abriu o seu restaurante, como contei parágrafos atrás.
MIAMI NO RADAR
A fama da comida do restaurante atravessou as fronteiras do Brasil e chegou, por exemplo, em Miami, na Flórida nos Estados Unidos.
“Muita gente quis me levar para lá e, se fosse, faria sucesso”, assegurou Cecília, sem modéstia. “Não fui pelos custos, tinha de ter um investidor.”

CLIENTES FAMOSOS
A lista de clientes famosos nos 26 anos do Cecília é extensa, principalmente formada por pessoas da televisão. A cozinheira recordou de muita gente, ainda que disse ser “péssima para nomes, as vezes esqueço até do meu”.
“O diretor teatral Gerald Thomas, as atrizes Lília Cabral, Ana Paula Arósio, Denise Fraga, Eliana Guttman e Marília Pêra (1943-2015), o chef Benny Novak, o ator e diretor teatral Miguel Falabella, os jornalistas Zeca Camargo e Salomão Schvartzman (1931-2019), o ator Aílton Graça, o cantor e ator Gilbert Stein e o empresário Adolpho Bloch (1908-1995) frequentaram o meu restaurante.”
“A Ana Paula Arósio gostava do borscht gelado”, lembrou Cecília sobre a sopa de beterraba com creme de leite, que ganha outros nomes na Europa. Anos depois a atriz abandonou a carreira, se casou e vive no Reino Unido.
Ana Paula fez parte do elenco da “novela das oito” Esperança (TV Globo, 2002/2003), escrita por Benedito Ruy Barbosa e Walcyr Carrasco. Ela integrou o núcleo judaico da trama, onde interpretou Camille, filha do casal Ezequiel (Gilbert Stein) e Tzipora (Eliana Guttman). Talvez por causa desse papel ela quis conhecer um restaurante judaico.

A cozinheira continuou a lembrar de outras histórias. “A primeira vez do Adolpho Bloch no meu restaurante foi emocionante: ele chorou e eu chorei também. Ele adorava a costela bovina, o varenique, o tcholent e o picles de pepino”, recordou a cozinheira. Imagino que a comida da Cecília fazia Bloch voltar à sua cidade natal de Jitomir, na Ucrânia.
“O Bloch vinha do Rio de Janeiro. Assim que chegava em São Paulo ligava para o [Marcos] Arbaitman e dizia: ´Você vem me buscar e vamos direto almoçar na Cecília.” O empresário foi presidente da Bloch Editores, que editava entre outras a finada e icônica revista Manchete, e da Rede Manchete de rádio e TV.

TRABALHO EM CASA
Após 26 anos e um certo cansaço, Cecília fechou o seu restaurante. No entanto, o trabalho de cozinhar permanece ativo até hoje — mais de 15 anos depois de cerrar as portas. Ela e a filha Rosana preparam em casa e atendem os pedidos por encomenda.
Quem quiser fazer encomendas e saber mais sobre os pratos e preços deve ligar ou escrever no Whatsapp (11) 99287-9299.
SAUDADES
Perguntei à cozinheira se hoje ela abriria um restaurante no mesmo modelo do Cecília. A resposta foi negativa.
“A carga tributária é muito pesada, e o preço dos produtos está nas alturas”, explicou ela. “Agora caso houvesse uma pessoa por trás, investidora, quem sabe? Mas estaria na casa mais para fazer a supervisão”, ponderou.
Cecília afirmou ter muitas saudades do restaurante. “Trabalhar nunca me assustou, e eu gostava bastante de conversar com os clientes, saber a opinião deles”, destacou ela. “Minha mãe, além de uma cozinheira fabulosa, era ainda a relações públicas do estabelecimento”, emendou a filha, Rosana.

Cecília sente saudades também da tradicional Peixaria Bom Retiro, que fechou recentemente na esquina das ruas Barra do Tibagi e General Flores. “Eu era freguesa do dono, o Luís, uma pessoa muito bacana, desde quando cheguei em São Paulo em 1954.”

Cecília, minha mãe e tantas e tantas outras iídiche mames (as mães judias, em iídiche) compravam carpa lá para fazer o guefilte fish.
Como ela não pode ficar sem um bom fornecedor de peixe, já arrumou uma nova peixaria. É a Nossa Senhora de Fátima, no Mercado Municipal de Pinheiros na Zona Oeste de São Paulo. “Indico de olhos fechados.”
Por falar em peixe, questionei ela se prefere salmão ou hering (arenque). A resposta foi pelo segundo. Cecília também revelou duas outras preferências, ambas produzidas no seu querido Bom Retiro: as burekas da Casa Búlgara, da sua amiga Shoshana Baruch, e a chalá “doce e sem uva passa” do Emporium Brasil Israel. Chalá é o pão judaico trançado saboreado no jantar do início do Shabat, o descanso semanal israelita, na noite de sexta-feira.
OS DOCES E O PÉKALÊ
Nos finalmentes da entrevista, Cecília fez propaganda da outra filha, confeiteira e dona da Brigaderia da Rê by Renata Judkowitch. “Os doces, os bolos, enfim, tudo o que ela faz é maravilhoso, você tem de entrevistar ela.”
Aceitei na hora a sugestão de pauta — ideia de matéria no jargão jornalístico. Em breve aqui no QUE GOSTOSO!.

Antes de ir embora, Cecília perguntou o que gosto de pratos judaicos. “Guefilte fish e vareniques, entre outros”, respondi. “Vou te preparar um pékalê com eles, tá?”, ela me disse, sem revelar pra quando. Pékalê, pacotinho em iídiche. Por que ela ofereceu?! Hummm… Não vejo a hora… Foi um prazer entrevistar a icônica, talentosa, simpática e talvez a decana cozinheira da comida judaica de São Paulo.
Nota do Editor: texto alterado em 20 de março de 2022.
Como sempre os textos do Claudio Chapo são super saborosos. É o unico jornalista que escreve sobre comida que tempera as frases com letras cdeliciosas. Ele tem o dom de dar vida aos textos. Nao perca por nada
Sensacional
Cláudio querido nem tenho como agradecer !!!!estou emocionada !!!!quanta delicadeza e quanto profissionalismo em suas palavras!!!! Há muito tempo não lia uma matéria tão gostosa, divertida e informativa!!!
muito obrigada pelo carinho para com a Dona Cecília , e com nossa história
Ela é minha idala , e uma das pessoas que eu mais amo na vida !!!
Ela é minha referência para tudo!!!
muito obrigada por tudo querido!!!
Reportagem sensacional !!!!!!!!!!!!!!!
Parabéns!!!!!!
Nessa matéria em especial, nota-se que seu coração bateu mais forte em cada palavra que escreveu. Linda homenagem à sra Cecília, que nos faz lembrar nossas amadas e saudosas mães. (por quê não anotei aquela bendita receita…) Linda homenagem à cultura judaica, linda história de vida dessa gente que está desaparecendo aos poucos, lamentavelmente. Parabéns, Schapo querido!
Parabéns Cláudio, pela matéria tão delicada e abrangente. Parabéns à Cecília por preservar por toda a vida, o conhecimento de uma gastronomia tão importante. Não duvido da maravilha que deve ser os pratos que ela prepara!
Que maravilha de materia!! A Cecilia merece!! ❤️❤️❤️