Vinho natural: de volta ao começo

por Lucia Grimaldi*

Olá, internautas amantes do vinho! Continuamos vivendo uma situação de pandemia e são cada vez mais comuns as notícias sobre como o meio ambiente está se renovando com o nosso afastamento: diminuição da poluição na atmosfera e nas águas do planeta, ressurgimento de animais em lugares inusitados e passarinhos voando aos montes. Essa constatação tem gerado vários questionamentos sobre as interferências nocivas do ser humano no meio ambiente e as questões sobre sustentabilidade estão borbulhando por aí. Há uma crescente busca de técnicas de agricultura sustentável, na tentativa de reduzir ao máximo o uso de produtos químicos nas plantações e proteger a terra. Desde as feiras de bairro aos grandes supermercados, a oferta e a procura por produtos orgânicos é cada vez maior. E no mundo do vinho não é diferente. Debates, lives e artigos sobre vinhos naturais, vitivinicultura sustentável e vinificação tradicional versus convencional proliferam cada vez mais, no sentido de mais equilíbrio e menos padronização: um retorno ao passado na busca de um futuro.

É sobre isso que falarei um pouco: vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais. São vinhos elaborados com a menor interferência humana possível, métodos menos invasivos, sem artifícios químicos ou padronizações. Por isso, são diferentes, mais rústicos e artesanais, mas de uma autenticidade e franqueza que vêm conquistando cada vez mais apreciadores. Vejamos algumas das suas características e alguns de seus exemplares.

Para entender o conceito de vinho natural, precisamos relembrar o de vinho convencional. O vinho nada mais é do que o suco da uva prensada (mosto) fermentado por microorganismos chamados leveduras, que transformam o açúcar do mosto em álcool, gás carbônico e calor. Fatores como o plantio da uva, a seleção padronizada de leveduras, a adição de sulfitos e outros conservantes e o uso de correções alcoólicas, estabilização e clarificação, definirão se o produtor está interferindo ou apenas conduzindo o processo de feitio do vinho, ou seja, se se trata de um vinho natural ou convencional. Vejam dois artigos bem interessantes sobre isso: o primeiro aqui e o segundo aqui.

Vemos por aí a classificação “vinhos tradicionais e vinhos naturais”. Não concordo com ela e sabem o por quê? Porque, para mim, quanto menos interferência humana houver em um processo, mais tradicional ele será. Um exemplo é a vinificação em ânfora, método ancestral que está na moda hoje, assim como os vinhos laranja, que nada mais são do que uma forma antiquíssima de vinificar uvas brancas. Por isso, prefiro os termos “vinhos convencionais e vinhos naturais”, pois convenção remete à padronização, a um modelo, por exemplo, o uso de determinadas leveduras para que o vinho X tenha os aromas e sabores Y.

Dito isso, vamos ao que interessa!!!

VINHOS ORGÂNICOS OU BIOLÓGICOS
São elaborados por uvas cultivadas com uma metodologia sustentável restrita, sem (ou quase sem) tratamentos químicos e defensivos agrícolas. As vinhas devem ser adaptadas para se adequarem aos padrões biológicos necessários às certificações concedidas pelos órgãos de acreditação dos vinhos, as quais constam nos seus rótulos.

Vinho orgânico espanhol Mendraka (fotos Lucia Grimaldi), varietal elaborado com a uva nativa basca hondarrabi zuri: muito diferente. Produzido pela Bodega Elizalde na D.O. Bizkaiko Txakolina, localizada nas áreas montanhosas do País Basco, Espanha. É um vinho branco jovem, com aromas e sabores de frutas cítricas e brancas, como maçã verde, pêssego branco, maracujá e pera, além de notas florais, como jasmim. Chama a atenção a acidez peculiar muito presente, característica da Txakolina. Às cegas, eu diria tranquilamente tratar-se de um vinho italiano da casta trebbiano
Vinho orgânico chileno da linha Adobe da Emiliana Organic Vineyards, safra 2018. É um corte das uvas syrah, cabernet sauvignon e merlot, com aromas marcantes de frutas vermelhas, como morangos frescos e cerejas, e toques florias e cítricos, além de acidez intensa e o final longo

VINHOS BIODINÂMICOS
São feitos com uvas plantadas segundo a agricultura biodinâmica de Rudolf Steiner e Maria Thun. Utiliza práticas da agricultura biológica associadas aos princípios da cosmologia, da filosofia e da bioenergética, compreendendo a vinha como parte integrante de um organismo vivo muito mais amplo que apenas um mero conjunto de videiras, cujo cultivo observa os ciclos da lua e dos planetas, por exemplo. As pragas são evitadas e tratadas com preparados naturais, como pó de osso e ervas. Assim como os vinhos orgânicos, também passam por certificação própria.

Vinho biodinâmico francês Domaine Rimbert Carignan, da região do Languedoc: apresenta acidez marcante, aromas de terra molhada e notas defumadas. De características rústicas e expressivas, tem um leve frisante, que reflete os traços de uma segunda fermentação em garrafa, já que não passou pelo processo convencional de estabilização
Vinho biodinâmico espanhol Metamorphika, safra 2017, da Catalunha. Elaborado com as uvas sumoll blanco de um modo realmente tradicional: nas ancestrais ânforas de barro. É um vinho laranja, ou seja, a fermentação ocorre em contato com as peles das uvas brancas durante seis semanas aproximadamente, o que lhe confere esta cor âmbar, ou alaranjada, além de aromas e sabores muito peculiares, complexidade e final longo na boca. Estagiou por cinco meses em barris de carvalho francês bem usado, o que significa que a madeira não adicionou características ao vinho: ele é, realmente, um reflexo autêntico do terroir e da vinificação

VINHOS NATURAIS
São vinhos orgânicos ou biodinâmicos, cuja fermentação do mosto é espontânea ou natural, ou seja, a fermentação é feita pelas leveduras “selvagens” que estão na casca da própria uva, não sendo acrescentadas leveduras externas selecionadas pelo produtor, ou seja, a interferência humana é mínima. Não há adição de sulfitos ou algum conservante químico. Além disso, a plantação das uvas não se dá em regime de monocultura, mas diversas culturas são semeadas em conjunto, o que estimula a biodiversidade e influencia os sabores das próprias uvas. É comum que a estabilização ocorra com o tempo na garrafa, e que não sejam realizados processos convencionais como a correção no nível alcoólico, a filtragem e a clarificação do vinho.

Vinho Faccin Mavasia Bianca, safra 2018, da Vinícola Faccin, localizada em Monte Belo do Sul (RS), eleito o melhor malvasia do Brasil no Concurso Wines of Brazil Awards 2019. Apesar de classificado como vinho branco seco, foi macerado com as cascas por quatro dias… Isso mesmo, é um maravilhoso e surpreendente vinho laranja! Muito complexo no nariz e na boca, apresenta aromas e sabores de casca de laranja, doce de laranja em compota, mel e melaço, amêndoas, rosas e folhas secas. A vinificação é natural, não havendo adição de sulfitos e a estabilização ocorre na própria garrafa durante 120 dias
Vinho Apagão, também da vinícola Faccin, é elaborado com as castas malvasia bianca, riesling itálico, chardonnay, peverella e merlot, vinificadas separadamente e unidas após o final da fermentação. Surpreende todos os sentidos! Na garrafa, um intrigante degradê de cores. Na taça, uma tonalidade âmbar, de intensidade média, mas turva, já que a estabilização é feita na garrafa e não há filtragem. No nariz, os aromas são intensos e variados, ainda em evolução, e na boca, um vinho quase seco, com acidez, corpo e álcool médios, mas com muitos sabores. A pluralidade do nariz se repete na boca. Preparem-se: flor de laranjeira, toranja, casca de laranja, damasco, nectarina, lavanda, alcaçuz, folhas molhadas, além de notas de menta, maresia e uma alguma mineralidade, lembrando sílex.

Mas nem só de vinhos tranquilos é feito o mundo dos naturais! O Pétillant Naturel, ou Pet Nat, como são conhecidos os espumantes naturais, são produzidos por um método mais antigo que o método champenoise ou tradicional da região francesa de Champagne. O Pet Nat é engarrafado ainda durante a primeira fermentação, que continua ocorrendo dentro da garrafa e gerando gás carbônico, que além de originar as lindas bolhinhas, ainda protegem o vinho da oxidação (por isso não precisa de sulfitos). Geralmente é menos efervescente e alcoólico que o espumante convencional, mas isso é compensado com a autenticidade e a representatividade do seu terroir. Podem ser brancos, rosés ou tintos. Detalhe: não são vedados com rolha, mas com uma tampa metálica, semelhante às tampas de cerveja. Alguns têm ainda uma tampinha plástica, chamada biduli.

Vedação dos espumantes naturais, com tampas de borracha e metal
Dois Pet Nat da Cantina Mincarone: um espumante varietal da uva chardonnay, com boa acidez e refrescância, e notas marcantes de maçã cozida, bem fácil de beber. À esquerda, um exemplar mais encorpado, feito com as uvas peverella e trebbiano, com menos acidez, mas maior complexidade: notas de folhas e rosas secas e melaço, lembrando muito um Chianti, provavelmente por causa da peverrella, que lembra muito a sangiovese
Pet Nat da Arte da Vinha, vinícola localizada em Garibaldi (RS), elaborado com a uva pinot noir, tem boa acidez e frescor, com leves aromas frutados e de folhas molhadas. Na boca, notas de frutas vermelhas, como framboesa, cereja e groselha, dão o tom, mas o que chama a atenção mesmo são os sabores de panificação decorrentes do contato do vinho com as leveduras durante a fermentação dentro da garrafa. Notem que o nome da casta vem escrito à mão na garrafa: um processo realmente artesanal e cuidadoso de produção

Para finalizar, um lembrete importante: não se degusta um vinho natural como se degusta um vinho convencional. É importante deixar os preconceitos de lado e experimentar! Querem saber um pouco mais na prática? A 8ª edição da Feira Naturebas, realizada em São Paulo, está programada para o mês de novembro de 2020, na Casa das Caldeiras. E quando voltarmos a sair de casa, visitem alguns bares especializados no assunto, como o Sede261, a Enoteca Saint Vin Saint e o Beverino Bar de Vinhos Naturais, todos na capital paulista.

E para vocês, qual é o melhor vinho: o convencional ou o natural? Para mim, é aquele que tenha qualidade e agrade o meu paladar, afinal, vinho bom é aquele que você gosta de beber!

Um brinde!

*Lucia Grimaldi, colunista do Que Gostoso!, é graduada e pós-graduada em fonoaudiologia e direito e possui a certificação internacional Wine & Spirit Education Trust (WSET) nível 2. Contatos: grimaldipervino@gmail.com e o @grimaldipervino

4 comentários sobre “Vinho natural: de volta ao começo

  1. Mais uma excelente abordagem desse universo magnífico! explanação clara, em sintonia com as novas tendências em sustentabilidade na vitivinicultura! Deu até vontade de abrir uma garrafa e celebrar a vida!
    Parabéns Lucinha! Saúde! 🍷

  2. Artigo bem esclarecedor e didático sobre um tipo de vinho que, a cada dia, ganha mais o gosto e a preferência dos amantes do vinho. Parabéns!!

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